Literatura contemporánea de Portugal / No. 212



primeiro poema de berlim

para a Francisca Camelo


na solidão dos claustros em kreuzberg
um santo carrega ao alto e sem segredo
a sua cruz envolto pela noite
não tem outra cor que não o branco
a sua veste mas eu queria que fosse
azul escuro e orlado de estrelas
com qualquer coisa

de solene, selvagem, agreste
a sua sagração é incompleta
marítima, ululante
ele como nós falhou em juntar-se aos normandos
revelar-se solitariamente crente
e assim consolado por um sossego de pedra
guardam-no agora nós e esta máquina fotográfica
pequenos animais noctívagos
a memória distante de martírios
em glória febril e efémera
que também a ele não o consolam
e uma absurda calma
uma estoica e autoritária indiferença
contra os bêbados que às vezes cortam
pelas vedações do jardim
contra os turistas que param
para a ocasional fotografia
triunfa também sobre algo em nós
mas não sabemos o quê
e este santo que não tem sinapses
também não nos saberia dizer

e eu quero que ele cante
e que nos conte todos os seus segredos
se algo o moveu tanto quanto nos comovem
amigos que nos esperem pela calada da noite
pelas horas cedo da manhã em todas as cidades distantes

nesta noite no entanto duas solitárias raparigas
fazem em linha recta a distância entre isto
e checkpoint charlie
o santo talvez pregue
tanto o sugere a cruz ao alto
a outra mão erguida com um polegar ligeiramente curvado
talvez o que ele diga pegue
a este quanto de ser muito tarde e estarmos sóbrias
como os santos nos seus momentos de pedra
que não foram feitos para arcar
com toda esta perda que nos rodeia
ainda que não seja ainda esta, francisca, a conversa
que vai descambar para a minha absurda necessidade
de mais estátuas de santas em êxtase
mais estátuas de santos a divertirem-se
em todas as alamedas de todos os jardins
de todos os claustros do mundo

a atenção de uma promessa também é isto
este momento dado por uma amiga
um tempo fora do seu rigor
na abertura de uma primavera
que carrega nela a cicatriz de um longo inverno
uma abertura voraz e em vermelho
de frutos que hão-de brotar inteiros e doces
e também nós não querermos
acreditar num deus que não dance
num deus que não aceite o nosso sangue
a sua velocidade quente
os seus jogos de inquietude e retrocesso
tão pronto para pequenas absurdas conquistas
um deus que não se sente para uma conversa connosco
é o que não poderíamos aturar

porque também nos momentos de pausa
o ardor do mundo arca com o seu próprio peso
abre-se no seu fogo contra a contracção
de um punho que se fecha sobre os nossos úteros
os nossos braços os nossos olhos
a nossa alegria que ninguém poderá quebrar

que ninguém poderá quebrar
mas penso que o ardor do mundo
conta até o tempo
de quanto durou esta pausa
tão inclemente que saberá até
quanto tempo levou até o açúcar
de sucessivas barras de chocolate
ter redundado em sugar rush

mas descola-se e vai cair

já está na luz inscrita no corpo do santo
na ausência prometida pelos delicados detalhes
do seu brocado de mártir
repara como até ele
para ficar tão iluminado
tem de ser assim vivo, pedestre, pagão
capaz de uma caminhada em linha recta
luz vinda de baixo para cima e assim aceite

Berlim, 25 de Maio de 2018
Oxford, 28 de Maio de 2018


primer poema de berlín

para Francisca Camelo


en la soledad de los claustros de kreuzberg
un santo carga en lo alto y sin secretos
su cruz envuelto por la noche
no tiene otro color sino el blanco
su vestido pero yo quería que fuera
azul oscuro y bordado de estrellas
con un aire
de solemne, salvaje, agreste

su consagración es incompleta
marítima, ululante
como nosotros él falló al unirse a los normandos
revelarse solitariamente creyente
y así consolado por un sosiego de piedra
lo guardan ahora nosotros y esta cámara
pequeños animales noctámbulos
la memoria distante de martirios
en gloria febril y efímera
que a él tampoco lo consuelan
y una absurda calma
una estoica y autoritaria indiferencia
contra los borrachos que a veces cortan
por las cercas del jardín
contra los turistas detenidos
para la ocasional fotografía
triunfa también algo en nosotros
pero no sabemos qué
y este santo que no tiene sinapsis
tampoco nos sabría decir

y quiero que él cante
y que nos cuente todos sus secretos
si algo lo tocó tanto como nos conmueven
los amigos que nos esperan a altas horas de la noche
o en las horas de madrugada en todas las ciudades distantes

esta noche sin embargo dos solitarias muchachas
recorren en línea recta la distancia entre esto
y checkpoint charlie
el santo tal vez pregone
como sugiere la cruz en lo alto
la otra mano erguida con un pulgar ligeramente curvado
tal vez lo que él diga haga efecto
en este ser tarde y estar todavía sobrias
como los santos en sus momentos de piedra
que no fueron hechos para soportar
toda esta ruina que nos rodea
aunque no sea aún esta, francisca, la conversación
que va a tropezar con mi absurda necesidad
de más estatuas de santas en éxtasis
más estatuas de santos que se divierten
en todas las alamedas de todos los jardines
de todos los claustros del mundo

la atención a una promesa también es esto
este momento dado por una amiga
un tiempo fuera de su rigor
en el inicio de una primavera
que carga con ella la cicatriz de un largo invierno
un inicio voraz y en color rojo
de frutos que brotarán enteros y dulces
porque tampoco queremos
creer en un dios que no baile
en un dios que no acepte nuestra sangre
y su velocidad caliente
sus juegos de inquietud y retroceso
ávido de pequeñas absurdas conquistas
un dios que no se siente a conversar con nosotros
es lo que no podríamos soportar

porque también en los momentos de pausa
el ardor del mundo carga su propio peso
se abre en su fuego contra la contracción
de un puño que se cierra sobre nuestros úteros
nuestros brazos nuestros ojos
nuestra alegría que nadie podrá romper

que nadie podrá romper
pero pienso que el ardor del mundo
cuenta hasta el tiempo
de cuánto duró esta pausa
tan inclemente que sabrá hasta
cuánto tiempo le llevó al azúcar
de sucesivas barras de chocolate
haber redundado en sugar rush

pero se desprende y cae

ya está en la luz inscrita en el cuerpo del santo
en la ausencia prometida por delicados detalles
de su brocado de mártir
mira cómo incluso él
para estar tan iluminado
tiene que ser vivo, pedestre, pagano
capaz de una caminata en línea recta
luz que viene de abajo hacia arriba y así se acepta
 
Berlín, 25 de mayo de 2018
Oxford, 28 de mayo de 2018



flores caras

—Even losing you (the joking voice, a gesture
I love) I shan't have lied. It's evident
the art of losing's not too hard to master
though it may look like (Write it!) like disaster.
Elizabeth Bishop, "One Art",
The Complete Poems (1926-1979)

It's true, these last few years I've lived
watching myself in the act of loss—the art of losing
Elizabeth Bishop called it, but for me no art
only badly done exercises
acts of the heart forced to question
its presumptions in this world
Adrienne Rich, Contradictions: Tracking Poems, "16",
Your Native Land, Your Life (1986)1


enquanto aí estiveste

havia uma bússola na mesa onde ela escrevia
gente que falava uma língua que ela não entendia
à volta dela
e uma mulher brusca e naquele tempo
ainda incapaz de tristeza
que lhe tentou talvez mostrar como seria viver
sem dúvidas e sem incertezas
sem a sintonia com a escuridão
que é requerida dos poetas

nas estradas interiores de pequenas cidades
em nova inglaterra ou nova iorque
a chuva cai a cântaros e sem trégua
sobre os gatos vadios e sobre os porsche
e ela com a vista que falha entretém-se
a queimar os atacadores de umas velhas sapatilhas
mas estes são os olhos que de noite
viram as luzes altas nos parques
e as samambaias e os pequenos barcos
nos lagos artificiais e sonharam
com central park e com o rio de janeiro
as mãos são as mesmas que em algumas tardes
fizeram gestos para reclamar sobre o preço das flores
são aquelas cujos dedos penetraram
o interior dessa mulher brusca de cabelo negro
o seu próprio interior muitas vezes depois
por desejo, alegria, raiva, decepção
e de novo porque a vida se renova em bátegas
mesmo em redor das cicatrizes mais fundas
um desejo ferido transplantado com o seu ardor
e a sua memória para casas incertas
de janelas altas onde esperar o último clarão
de uma última forma de ausência

e são estes mesmos os dedos que agora se ocupam
em redor do atacador e de uma espera pelo nada
que escreveram um verso despretensioso
apolítico o supremo verso de uma esteta apaixonada
sobre uma confluência de estrelas cadentes
no teu cabelo negro uma coroação de prata
precedida pelos círculos concêntricos
de coisas que antes disso explodem
comentadores destes versos
talvez possam ter negado a possibilidade
que houvesse neles qualquer coisa de erótico
mas se é verdade que se os homens pensam
que o fim do desejo chega
como uma explosão isso é assumir que é para nós
o mesmo que é para eles
apontemos que antes uma lenta deflagração
a que se sucedem violentas ondas que se contraem
e expandem num padrão imprevisível

a sua mente divaga agora
erra insegura em redor de uma memória
de anémonas e outras flores marinhas
pode ser que algures alguém
em algum ponto queira continuar a comentar
olha como eu aqui e agora
o que é o desejo como ele toma conta
do corpo das mulheres
pode até ser que uma arte de perder
não seja difícil de dominar

mas só no sentido em que a arte que há nos outros
digamos a sua sabedoria de arquitectos
uma vontade persistente e constante
como o desejo que chega como um mensageiro
antes do amor e continua a voltar mesmo quando este parte
(cada vez mais mutilado mas talvez não menos belo
do que certas estátuas que nos chegaram da antiguidade)
a sua habilidade para absorver o impacto
do embate com a nossa mais profunda melancolia
de uma tristeza crónica e sem remédio
só no sentido em que só a arte e o amor que há nos outros
nos pode ajudar a decifrar o vasto continente
que jaz adormecido no escuro
e é a besta solene e capaz de vida das nossas próprias vidas


flores caras

—Even losing you (the joking voice, a gesture
I love) I shan't have lied. It's evident
the art of losing's not too hard to master
though it may look like (Write it!) like disaster.
Elizabeth Bishop, "One Art",
The Complete Poems (1926-1979)

It's true, these last few years I've lived
watching myself in the act of loss—the art of losing
Elizabeth Bishop called it, but for me no art
only badly done exercises
acts of the heart forced to question
its presumptions in this world
Adrienne Rich, Contradictions: Tracking Poems, "16",
Your Native Land, Your Life (1986)1


mientras ahí estuviste

había una brújula en la mesa donde ella escribía
gente que hablaba una lengua que ella no entendía
a su alrededor
y una mujer brusca y en ese entonces
aún incapaz de tristeza
que intentó tal vez mostrar cómo sería vivir
sin dudas y sin incertidumbres
sin la sintonía con la oscuridad
que necesitan los poetas

en los caminos interiores de pequeñas ciudades
en nueva inglaterra o nueva york
la lluvia cae a cántaros y sin tregua
sobre los gatos sin casa y sobre los porsche
y ella con la vista que falla se entretiene
quemando las agujetas de unos tenis viejos
pero éstos son los ojos que de noche
vieron las luces altas de parques
y los helechos y pequeños barcos
en los lagos artificiales y soñaron
con central park y con río de janeiro
las manos son las mismas que algunas tardes
hicieron gestos para reclamar por el precio de las flores
son aquellas cuyos dedos penetraron
al interior de esa mujer brusca de cabello negro
y su propio interior muchas veces después
por deseo, alegría, rabia, decepción
y de nuevo porque la vida se renueva en bateas
incluso alrededor de las cicatrices más hondas
un deseo herido trasplantado con su ardor
y su memoria para casas inciertas
de ventanas altas donde se espera el último destello
de una última forma de ausencia

y son estos mismos los dedos que ahora se ocupan
en las agujetas y en una espera por la nada
que escribieron un verso sin pretensiones
apolítico el supremo verso de una esteta enamorada
sobre una confluencia de estrellas fugaces
en tu cabello negro una corona de plata
precedida por los círculos concéntricos
de cosas que antes de eso explotan

comentadores de estos versos
tal vez puedan haber negado la posibilidad
de que hubiera en ellos algo de erótico
pero si es verdad que si los hombres piensan
que el fin del deseo llega
como una explosión eso es asumir que para nosotros
es lo mismo que para ellos
señalemos que antes una lenta deflagración
a la que suceden violentas ondas que se contraen
y expanden en un patrón imprevisible

su mente divaga ahora
erra insegura alrededor de una memoria
de anémonas y otras flores marinas
puede ser que en algún lugar alguien
en algún punto quiera seguir comentando
mira como yo aquí y ahora
lo que es el deseo y cómo se apodera
del cuerpo de las mujeres
hasta puede ser que el arte de perder
no sea difícil de dominar

pero sólo en el sentido en que el arte que hay en otros
digamos su sabiduría de arquitectos
una voluntad persistente y constante
como el deseo que llega como un mensajero
antes del amor y continúa volviendo aunque éste parta
(cada vez más mutilado y tal vez no menos bello
que ciertas estatuas que nos llegaron de la antigüedad)
su habilidad para absorber el impacto
del embate con nuestra más profunda melancolía
de una tristeza crónica y sin remedio
sólo en el sentido en que sólo el arte y amor que hay en otros
nos puede ayudar a descifrar el vasto continente
que yace dormido en la oscuridad
y es la bestia solemne y capaz de vida de nuestras propias vidas




1 Quando Adrienne Rich publicou The Fact of a Doorframe: Selected Poems 1950-2001, este poema foi excluído dessa selecção.

1 Cuando Adrienne Rich publicó The Fact of a Doorframe: Selected Poems 1950-2001, este poema quedó fuera de esa selección.


Tatiana Faia (Lisboa, 1986). Doctora en Literatura Griega Antigua por la Universidad de Lisboa. Con José Pedro Moreira y André Simões editó la revista Ítaca: Cadernos de Ideias, Textos & Imagens (2009-2011). Actualmente es editora, con João Coles, José Pedro Moreira, Paulo Rodrigues Ferreira y Victor Gonçalves, de Enfermaria 6. Es autora del libro de cuentos São Luís dos Portugueses em chamas (Enfermaria 6, 2016) y de los libros de poemas Lugano (Artefacto, 2011), Teatro de rua (Artefacto, 2013) y Um quarto em Atenas (Tinta da China, 2018). Sus cuentos, ensayos, poemas y traducciones se han publicado en A Sul de Nenhum Norte, Ítaca, Caderno: Enfermaria 6, Modo de Usar & Co. y Colóquio/Letras e Relâmpago. Vive y trabaja en Estados Unidos.